A psicose do Valdir

 




Meu sonho era ser intelectual

Sim, desses tipos que usam óculos, terninho xadrez e fumam charuto enquanto pensam, sentados em uma poltrona de couro. Fantasia besta de quem achava que podia, através da personalidade e de umas três ou quatro frases bem colocadas, convencer as pessoas de que era minimamente inteligente. 

Não consegui alcançar meu sonho: apenas enchi minha cabeça com livros que só me trouxeram dúvidas e me convenceram que eu nunca chegaria lá. Enfim...Mas nem tudo é só lamento. Durante uma pós-graduação que fiz meio pra encontrar algum alinhamento entre meus pensamentos, corpo (meus chacras, talvez) e meus sentimentos (desaconselho fortemente buscar algum sentido na vida nos estudos!), fiz algumas leituras interessantes, entre elas, o livro de um dos gurus dos intelectuais wannabe, Umberto Eco (ótimo pra citações em conversas), Apocalípticos e integrados.

Como intelectual meia-boca que sou, não li o livro inteiro e tenho lá minhas dúvidas se realmente entendi o que ele queria dizer; entretanto, vi no título uma boa matéria pra reflexão.

Umberto Eco -  gettyimages.com

Se você tem uma percepção um pouco melhorzinha do mundo ao nosso redor, vai concordar comigo em uma coisa: há uma enorme ansiedade pelo fim; mas não qualquer fim, um fim apocalíptico que nos permita começar a humanidade do zero. É só olhar as séries mais assistidas e comentadas, tipo de Last of Us, a história é a mesma: sobrevêm-nos uma merda muito grande, sobram alguns seres humanos e temos a esperança de começar tudo de novo.

É um anseio geral pela catástrofe!

Apocalipse é uma palavra grega que significa nada mais do que descoberta, revelação. Qualquer um que já tenha pegado uma bíblia na vida sabe que o último livro dela tem esse nome, onde o apóstolo João recebe uma “revelação” carregada de simbolismo dos tempos do fim. 


Mas se apocalipse é uma revelação, não uma destruição, por que será que os filmes, seriados e jogos pós-apocalípticos sempre narram um recomeço após uma desolação? Não sei... Talvez o ChatGPT 4 tenha uma boa resposta; porém, mesmo sofrendo por ter uma inteligência natural e limitada, tenho uma hipótese, que, como tal, pode estar completamente errada.

Acredito que a minha geração tenha uma enorme (até exagerada) percepção dos problemas que nos cercam, mas se sente desesperançosa quando o assunto é por onde começar a solucioná-los. Não é por menos: é problema que não acaba mais e parece que levaria pelo menos um milênio inteiro para consertar. Pensar que alguma grande desgraça vai nos sobrevir e teremos uma nova chance de começar é até reconfortante, meio religioso, de certo ponto de vista. Encarar que a realidade é muito mais complexa do que gostaríamos que fosse é assustadoramente angustiante.

Portanto, nos tornamos (ou talvez sempre tenhamos sido) apocalípticos e hipocondríacos por natureza.

Agora, segundo nosso estimado Umberto Eco, não ser apocalíptico e anunciar o fim dos tempos nos tornaria integrados. Ao integrar-se, na minha hipotética interpretação, um sujeito simplesmente seria moldado pela realidade que o cerca e se moveria com o fluxo, sem deixar se incomodar.

Situação bastante confortável pra quem, por vontade própria ou não, ainda não abriu os sentidos à percepção das coisas. Bom, se você chegou até esse ponto do texto, provavelmente não deve ter muita disposição pra se integrar.

Isso nos leva a um dilema (outra palavra grega super legal): viver morrendo de ansiedade ou, como diria o grande Xande de Pilares, deixar acontecer naturalmente?

Se percebemos demais o mundo, temos a tendência a sermos apocalípticos e desesperados; se de menos, caímos no risco da integração e passividade.

Qual é a justa medida, se é que existe uma?

Pensando nesse dilema, enquanto fazia uma caminhada pelas ruas do meu infeliz bairro, me deparei com o Valdir, camarada muito interessante. Não importa se está frio ou calor, Valdir sempre está sem camisa e de bermuda, com raríssimas exceções.

Tem uma pele crestada e enrugada de tanto tomar sol e umas varizes na perna que me lembram a cordilheira dos Himalaias. O Valdir tem uma psicose (que talvez possa ser enquadrada como um TOC): ele limpa constantemente as calçadas, terrenos baldios, sarjetas, praças etc. Limpa a exaustão, com muito esmero.

De vez em quando, ele pega um giz e sai escrevendo frases nas esquinas, coisas do tipo: “Área escolar, ande devagar” ou “Não use o celular no volante”, umas dicas de bom cidadão. Também planta árvores. Além disso, vai à UBS aqui do bairro, muito educado, toma vacina e faz acompanhamento médico, bom sujeito o Valdir. 



Juntando a psicose do Valdir às premissas do meu dilema, cheguei a uma conclusão até razoável: o Valdir tem mais disposição para ser um cidadão do que os sujeitos aparentemente normais que desperdiçam a vida nos bares aqui do bairro.

E por que acho isso?

Porque, dadas suas limitações, ele faz o que pode e tem um senso de beleza e coletividade muito maior que a maioria das pessoas. Ele tem a necessidade de ver as coisas bonitas e organizadas pra ficar em paz consigo mesmo.

Valdir não é apocalíptico nem integrado; ele vê uma coisa que o incomoda, vai lá e, a seu modo, tenta consertar. Varrer uma calçada é algo extremamente simples, assim como plantar uma árvore; mas, muitas vezes, fazer o simples exige uma pequena dose de loucura ou muita coragem, que podem ser a mesma coisa.

Eu não me tornei o intelectual que eu gostaria ser, mas posso escrever um texto sobre algo que me interessa e talvez também desperte a sua atenção

Também já plantei árvores, cuido de plantas, varro minha calçada e tomo as vacinas, coisas que, embora simples, diminuem um pouco minha ansiedade de viver num mundo cheio de contingências onde muito provavelmente nunca chegue o vírus mortal que transformará todos em zumbis, mas deixará almas puras pra reconstruir nosso amanhã. Com isso, não me integro e ainda arrumo forças pra enfrentar meus apocalipses diários.


Autor: Rafael Silva — tradutor, revisor, professor incidental e poeta bissexto (um pouco apocalíptico, às vezes; mas nunca integrado).


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