Tédio!!

 


    Um dos diálogos mais interessantes da Música Popular Brasileira se dá entre a canção Tédio, da banda carioca Biquíni Cavadão, e o magistralmente esculachado funk de Mc Catra, Vai rolar um adultério.

Biquíni Cavadão
Mc Catra
 
    O tédio, sensação difusa experimentada com mais ou menos frequência por diferentes seres humanos, é cantada em uns versos bem interessantes e um ritmo dançante, coisa típica da música dos anos 1980, que dizia coisas sérias enquanto botava todo mundo pra dançar. 
    O enfado de permanecer trancado em um apartamento, sem nada para fazer e sem muito propósito parece um drama recorrente na vida de quem já teve as necessidades básicas supridas por certa medida de abastamento.
    Por outro lado, Mc Catra, trocando a palavra “monotonia” da canção original por “orgia”, sugere que o vazio das horas talvez tenha lhe despertado um desejo de cometer um pecado, no caso, um adultério.

    Entre ficar sério e atirar-se do prédio, como sugere tragicamente a canção do Biquíni, ou curar a monotonia fazendo uma orgia (que rima incrível!), como bem-dito por Mc Catra (solução também preconizada por Chico Buarque, que encontra a cura pra dor “na orgia da luz do dia”), é preciso fazer algo para aplacar o tédio, matar o tempo antes que ele nos mate.

Então, What shall we do now? *

    Num tom bem mais agressivo e pessimista, Roger Waters faz essa pergunta, da perspectiva de alguém que parece já ter conquistado tudo na vida. 

Roger Waters

    O tempo passa, mas não sentimos essa passagem da mesma maneira. Às vezes, ele se arrasta; às vezes, voa. Reclamamos de que trabalhamos demais e que não há tempo para o descanso.
    Enquanto isso, procrastinamos tarefas simples que poderiam ajudar a nos sentirmos mais plenos e satisfeitos. E o tédio nos arrasta por longas horas de agonia.

“Será que é tempo que nos falta pra perceber?”

    Talvez.

    Entretanto, a desigualdade na distribuição do tempo não é só uma questão de percepção individual, que varia com nosso estado de espírito, é um fenômeno socialmente observável.     Nesse contexto social, a resposta para essa divisão desigual das horas parece ser muito mais demográfica do que meramente semântica ou física, e, embora as queixas sobre a falta tempo venham de todas as classes sociais, convém afirmar que esse descompasso entre o tempo percebido e o vivido é mais prejudicial para a população que passa de 3 a 5 horas em um transporte público; sim, você adivinhou: a população mais pobre.

    Não falo aqui do tempo convencionalmente dividido em 24 horas. Essas são as mesmas pra todo mundo. Falo aqui do tempo que nos é dado para fugir da subsistência, para criar, imaginar caminhos possíveis para nossas histórias.

    Esse sempre parece mais escasso para quem sente sua segurança social sob ameaça constante. Em outras palavras, até dá pra usar as 4 horas no transporte público para ler Dostoiévski, tempo que, segundo a sua percepção pode passar rápido ou devagar; no entanto, mesmo que você tenha ideais brilhantes enquanto lê Crime e castigo, as contas a pagar no fim do mês serão prioridade e deixarão seus sonhos em segundo plano.

Fiódor Dostoiévski

    Mas Dostoiévski teve uma vida bem desgraçada e mesmo assim foi genial, qual é a sua desculpa?

    Talvez a melhor desculpa seja justamente não ser Dostoiévski e, portanto, não genial. Há muita gente abastada bastante medíocre.

    Por que os pobres precisam mostrar que são gênios pra terem sua dignidade minimamente preservada?

    Eu mesmo gostaria que a vida fosse bem mediana e todos morassem bem perto dos seus trabalhos.

    Toda essa discussão sobre tempo e tédio me faz lembrar que, enquanto a Amazônia pega fogo e o bilionário Jeff Bezos planeja um novo voo no seu foguete com forma de chapeleta, algumas empresas no Reino Unido têm testado uma semana de quatro dias. Nas minhas contas, vão sobrar três dias inúteis então. Maravilha! A tecnologia está ajudando os trabalhadores a terem um dia a mais! Um dia a mais para quê? 

    Nessa nova distribuição demográfica das horas, essa semana de quatro dias provavelmente não beneficiará todos os trabalhadores. Então quem são, onde vivem, do que se alimentam os beneficiários dessa redução na carga horária? Não sei.

    Os artigos sobre esse assunto são bem vagos e só dizem que “empresas” estão testando essa nova modalidade, sem especificar quais. Porém, tenho bons motivos para acreditar que os beneficiados não serão os imigrantes que entram pela porta dos fundos e que fazem realmente a Europa funcionar.

    Seja lá quem forem esses beneficiários, a certeza é de que terão mais tempo livre para se sentirem entediados. E pra preencher o vazio das horas existem infinitas maneiras.

    Eu, por exemplo, decidi escrever este texto para preencher meu primeiro dia de folga (quis tirar uns dias, já que PJ não tira férias). Logo após o café da manhã, quando me dei conta de que não iria trabalhar, por vontade própria, bateu uma ansiedade, talvez um tédio. A lista interminável da canção do Waters me veio à cabeça: Shall we get into fights/Leave the lights on/Drop bombs/Do tours of the east/Contract diseases…

    Junto com ela, veio a música do Catra, do Biquini e um pensamento:

    “Será que os britânicos vão aproveitar o dia a mais pra orgias ou se atirarão dos prédios?”

 

    *Por sugestão da brilhante Caroline Figueredo, pensei numa tradução pra música do Pink Floyd.

Título: E agora, o que faremos?

Versos: Começaremos uma briga/Deixaremos as luzes acesas/Jogaremos bombas/Viajaremos pelo Oriente/Contrairemos doenças

Para ficar mais legal, pensei em uns versos que coubessem na métrica da canção:

Vamos entrar numa briga/Esquecer de apagar/As luzes de casa/Ou malária pegar...


Autor: Rafael Santos da Silva — tradutor, revisor, aspirante a escritor, parcialmente entediado.


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