Tédio!!
Um dos diálogos mais interessantes da Música Popular Brasileira se dá entre a canção Tédio, da banda carioca Biquíni Cavadão, e o magistralmente esculachado funk de Mc Catra, Vai rolar um adultério.
O tédio, sensação difusa experimentada com mais ou menos frequência por diferentes seres humanos, é cantada em uns versos bem interessantes e um ritmo dançante, coisa típica da música dos anos 1980, que dizia coisas sérias enquanto botava todo mundo pra dançar.Então, What shall we do now?
*
Roger Waters |
O tempo passa, mas não sentimos essa passagem da mesma maneira. Às vezes, ele se arrasta; às vezes, voa. Reclamamos de que trabalhamos demais e que não há tempo para o descanso.
“Será que é tempo que nos falta
pra perceber?”
Talvez.
Entretanto, a desigualdade na distribuição do tempo não é só uma questão de percepção individual, que varia com nosso estado de espírito, é um fenômeno socialmente observável. Nesse contexto social, a resposta para essa divisão desigual das horas parece ser muito mais demográfica do que meramente semântica ou física, e, embora as queixas sobre a falta tempo venham de todas as classes sociais, convém afirmar que esse descompasso entre o tempo percebido e o vivido é mais prejudicial para a população que passa de 3 a 5 horas em um transporte público; sim, você adivinhou: a população mais pobre.
Não falo aqui do tempo convencionalmente dividido em 24 horas. Essas são as mesmas pra todo mundo. Falo aqui do tempo que nos é dado para fugir da subsistência, para criar, imaginar caminhos possíveis para nossas histórias.
Esse sempre parece mais escasso para quem sente sua segurança social sob ameaça constante. Em outras palavras, até dá pra usar as 4 horas no transporte público para ler Dostoiévski, tempo que, segundo a sua percepção pode passar rápido ou devagar; no entanto, mesmo que você tenha ideais brilhantes enquanto lê Crime e castigo, as contas a pagar no fim do mês serão prioridade e deixarão seus sonhos em segundo plano.
Fiódor Dostoiévski |
Mas Dostoiévski teve uma vida bem
desgraçada e mesmo assim foi genial, qual é a sua desculpa?
Talvez a melhor desculpa seja justamente não ser Dostoiévski e, portanto, não genial. Há muita gente abastada bastante medíocre.
Por que os pobres precisam
mostrar que são gênios pra terem sua dignidade minimamente preservada?
Eu mesmo gostaria que a vida fosse bem mediana e todos morassem bem perto dos seus trabalhos.
Toda essa discussão sobre tempo e
tédio me faz lembrar que, enquanto a Amazônia pega fogo e o bilionário Jeff
Bezos planeja um novo voo no seu foguete com forma de chapeleta, algumas empresas
no Reino Unido têm testado uma semana de quatro dias. Nas minhas contas, vão
sobrar três dias inúteis então. Maravilha! A tecnologia está ajudando os
trabalhadores a terem um dia a mais! Um dia a mais para quê?
Nessa nova distribuição demográfica das horas, essa semana de quatro dias provavelmente não beneficiará todos os trabalhadores. Então quem são, onde vivem, do que se alimentam os beneficiários dessa redução na carga horária? Não sei.
Os artigos sobre esse
assunto são bem vagos e só dizem que “empresas” estão testando essa nova
modalidade, sem especificar quais. Porém, tenho bons motivos para acreditar que
os beneficiados não serão os imigrantes que entram pela porta dos fundos e que fazem
realmente a Europa funcionar.
Seja lá quem forem esses beneficiários, a certeza é de que terão mais tempo livre para se sentirem entediados. E pra preencher o vazio das horas existem infinitas maneiras.
Eu, por exemplo, decidi escrever este texto para preencher meu primeiro dia de folga (quis tirar uns dias, já que PJ não tira férias). Logo após o café da manhã, quando me dei conta de que não iria trabalhar, por vontade própria, bateu uma ansiedade, talvez um tédio. A lista interminável da canção do Waters me veio à cabeça: Shall we get into fights/Leave the lights on/Drop bombs/Do tours of the east/Contract diseases…
Junto com ela, veio a música do Catra, do Biquini e um
pensamento:
“Será que os britânicos vão
aproveitar o dia a mais pra orgias ou se atirarão dos prédios?”
*Por sugestão da brilhante Caroline Figueredo, pensei numa tradução pra música do Pink Floyd.
Título: E agora, o que faremos?
Versos: Começaremos uma briga/Deixaremos as luzes acesas/Jogaremos bombas/Viajaremos pelo Oriente/Contrairemos doenças
Para ficar mais legal, pensei em uns versos que coubessem na métrica da canção:
Vamos entrar numa briga/Esquecer de apagar/As luzes de casa/Ou malária pegar...
Autor: Rafael Santos da Silva —
tradutor, revisor, aspirante a escritor, parcialmente entediado.
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