05 de Dezembro - Dia Internacional do Voluntário.

Numa tarde de sábado: faz 32°C (a temperatura perfeita para muitos; para outros, nem tanto) e, na ausência de um ar-condicionado — luxo indispensável em tempos de planeta mais quente —, seu ventilador, embora esforçado, já apresenta alguns sinais de cansaço. 
 
Não há muito o que fazer, o calor é forte, o sol atravessa a cortina e faz reflexo na tela do notebook onde você tenta, sem sucesso, achar alguma série ou filme que preste pra assistir no streaming. A derrota só não é completa porque ainda resta um recurso, que obviamente é tomar uma cerveja. 

Você abre a geladeira e ela tá cheia que dá gosto: cheia de coisas saudáveis que o seu “eu-fitness-não-vou-mais-beber” decidiu comprar na feira depois de ter saído da academia; cerveja que é bom, nada.

O jeito é sair e subir até a adega da rua de cima da sua casa, onde os proativos meninos da geração Y, X, Z ou sei lá qual atendem sempre com aquele penteado na grife, cortinho de gilete na sobrancelha e fumando um narguilé que tem cheiro de gelatina de framboesa.

Você, que foi até lá apenas pela cerveja, escolhe, paga e sai contente com sua sacola na mão. No caminho de volta, você vê um tiozinho dirigindo um Palio 97 caindo aos pedaços, aqueles meio cinza que vão desbotando por causa do sol. A condição natural desses carros é quebrar no meio da rua, o que, nessa tarde quente de sábado, de fato acontece.

O tiozinho desce de seu automóvel e tenta empurrar. Você vê que ele está se matando no sol forte. O dilema: vou lá ajudar ou não. Você pondera em milésimos de segundos os prós e os contras — coitado do tiozinho, nesse sol, vou ajudar. O tiozinho agradece, diz um Deus te abençoe, e você volta pra casa com um sentimento bom de ter feito a coisa certa, apesar de uma certa preguiça.

O altruísmo, segundo a filosofia Positivista, é a tendência dos seres humanos de se preocupar com seus semelhantes, que, embora até certo ponto instintiva, deve ser aprimorada. Em outras palavras, o desprendimento é uma característica humana porque somos seres sociáveis que precisam de colaboração mútua para sobreviver.


Nossa organização social foi ficando muito complexa com o passar dos séculos e, hoje, os vínculos sociais estão profundamente entrelaçados com as relações de consumo, o que dificulta nossa percepção das relações afetivas reais entre os seres humanos.

Pense aí, você, qual foi a última que sobrou tempo e disposição pra ajudar alguém? 

Sabemos que a vida corrida moderna e as milhares de obrigações diárias que temos sugam nossa energia ao esgotamento. Se não sobra tempo nem pra mim mesmo, como vou conseguir doar um pouco para os outros? Essa é uma pergunta difícil de responder e cada pessoa precisa achar sua própria resposta.

Como este texto tem um autor, e todo mundo que escreve tem algo a dizer, peço licença a você que me lê pra contar a minha história com voluntariado.

Acho que existe um senso comum dizendo que as pessoas que se dispõem a ser voluntárias têm alguma espécie de aura especial de altruísmo e amor a uma causa que as torna melhor do que as outras. Exemplo disso são os processos de recrutamento que dão preferência àqueles que afirmam serem voluntários em alguma causa.

Embora pensar isso seja muito bonito e idealista, há bastante ingenuidade nesse raciocínio. Seres humanos são complexos, a gente nunca é uma coisa só, mas sim várias coisas, tudo no mesmo tempo e lugar. Dá pra ser altruísta e desprendido enquanto se é egoísta e preguiçoso, tudo numa pessoa só. Não dá pra se considerar um super-herói (e eu odeio super-heróis) só porque se é voluntário.

Minha principal motivação pra me tornar voluntário foi um grande sentimento de inconformidade, de revolta mesmo, por não ser capaz de transformar nada. O incômodo foi crescendo dentro de mim e senti que precisava dar um jeito naquilo, mas como?

Minha resposta veio durante uma caminhada pelo meu bairro. Vi um senhor limpando o terreno de uma sede comunitária abandonada, perto da minha casa, lugar que nunca me inspirou muita confiança. Mas meu sentimento de mal-estar era tão grande que tomei coragem e fui falar com esse senhor.

Oferecei ajuda, ele agradeceu, e trabalhamos juntos carpindo o campo de futebol pras crianças.

Particularmente, sempre gostei de trabalhos manuais, acho que são muito dignos. Fiquei amigo desse senhor e fizemos vários outros trabalhos juntos. Infelizmente, a sede comunitária não foi pra frente, mas aquilo me despertou algo. Não foi um sentimento de êxtase ou superioridade por ter feito alguma coisa legal pra alguém, mas uma consciência de que eu tinha a capacidade de ajudar.

Dispunha de tempo, condições e conhecimento para ajudar e não tinha nenhuma desculpa para não o fazer.

Nunca mais parei.

Continuava inconformado, estar preocupado é meu passatempo nas horas vagas, e precisava transformar essa capacidade de ajudar em algo mais concreto. Foi aí que entrei em contato com a incrível Kátia Ptti, idealizadora da ONG então chamada Black Angel que agora é conhecida como Casa da Tia Corinthians.

Conheci a Kátia numa roda de samba, em que ela estava pedido bolachas pra doar pras crianças. Naquele dia jamais imaginei que algum dia seria voluntário em uma ONG. Seguia a ONG Black Angel nas redes sociais, fazia doações financeiras, compartilhava as fotos, curtia os posts... 

Enfim, ajudava de longe.

Tudo mudou quando vi um post da Kátia com as crianças tentando fazer uma horta comunitária na favela do Haiti, comunidade onde a Casa da Tia Corinthians está instalada no momento. Quis ajudar a fazer a horta, que, embora não tenha saído da maneira planejada, me ensinou a trabalhar plantando mudas de alface com 10 crianças no meu pé, jogando terra e minhocas umas nas outras.


 Das aulas de horta, fui pras de música e destas pras de alfabetização de adultos. Nem sempre o trabalho sai como esperado, às vezes dá tudo errado, meu carro quebra, apenas um aluno vai à minha aula, entre outras coisas. Na maioria das vezes, eu tenho preguiça de sair da minha casa e ir até lá dar aula pra quatro alunos. Mas, outro dia durante uma aula, um dos meus alunos me falou que, graças aulas que a gente tá fazendo, ele agora podia ler sozinho os nomes das pessoas sem precisar da ajuda da esposa dele!


      
 
              




Se eu encerrasse este texto dizendo que é uma experiência muito gratificante e recompensadora ajudar outras pessoas, você, meu leitor, poderia achar que tudo isso é lindo mas que está além da sua capacidade; afinal de contas, ambos sabemos da vida dura que levamos. Por isso, prefiro acabar dizendo que o sentimento de ajudar alguém é recompensador, mas também frustrante, gratificante ainda que insatisfatório.


Se a filosofia positivista de Comte tem algo a ensinar é que o altruísmo é uma característica inerentemente humana, mas precisa ser cultivado. Ser voluntário é uma das formas de cultivar o altruísmo, há outras.

Se você dispõe de tempo, recursos e conhecimento pra ajudar sendo voluntário e ainda não é, vai acabar chegando à mesma conclusão que eu cheguei: a única coisa que me impedia de me doar pra outras pessoas era eu mesmo.

 

Se você se interessou em se tornar voluntário ou contribuir de outra forma, vou deixar o link para página da Casa da Tia Corinthians, que a ONG em que sou voluntário.


Autor: Rafael Santos da Silva, tradutor, revisor e lutando pra ser um voluntário menos ocasional.

Link da Casa da Tia Corinthians no Instagram: https://www.instagram.com/casadatiacorinthians/

 

Referências:https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/positivismo.htm; https://institutoreacao.org.br/dia-do-voluntariado-saiba-tudo-sobre-o-dia-internacional-do-voluntario/

           

  



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